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terça-feira, 5 de julho de 2016

SÔBOLOS RIOS

Nasci em terra desprovida de cursos de água, da qual então se dizia "Montes, muito vinho e poucas fontes". 
Talvez por isso, talvez do sangue semita -- os Montes terá sido povoado por cristãos-novos -- a água sempre me fascinou e está presente nas minhas memórias mais antigas: a primeira vez que vi o mar, levado de bicicleta pelo meu pai à Nazaré, episódio ficcionado em Entre Cós e Alpedriz; uma pescaria abortada às enguias nas valas da várzea das Cobradas com o meu pai e o eu rio Zé; o "rio" das Loireiras em Alpedriz, acompanhando a minha mãe na lavagem semanal da roupa, num dia em que ela se esqueceu da colher para a sopa, e me improvisou uma com o pão do acompanhamento -- que eu comia a cada "colherada", apesar dos ralhos; Chaqueda, para onde fui aos seis anos, com "rio" nas traseiras da nossa casa, onde o meu pai pescou com rede muitos peixes desconhecidos, enormes, pareciam-me, e talvez por não saber o que fazer a tanta abundância, colocou-os no tanque da roupa, cheio de água fresca -- e de manhã, bolavam de barriga para cima, mortos, soltando um pivete fétido; as águas frias e cristalinas da represa que alimentava a azenha do nosso senhorio e patrão, o senhor Luís,a poucos metros da casa onde morávamos,  um remoinho a meio que sorvia e arrastava a água quase até ao fundo, onde os peixes nadavam em cardume, dorsos escuros a confundirem-se com o lodo, nas voltas brilhava por vezes o prateado das escamas do ventre e era a medo que me debruçava para mergulhar mãos e braços a tentar apanhar peixe e sentir a força da correnteza que se deslocava para a conduta da roda da azenha, e fazia rodar duas mós enormes, rugosas, que incessantemente moíam trigo, caído grão a grão de uma tremonha agitada pelo mecanismo. Já então, aos cinco anos, me julga mais esperto do que os outros, para quê duas pedras enormes a moerem um grão de cada vez? E empurrei umas mãos cheias de cereal, logo as mós encravaram, pouco depois surgiu afogueado o senhor Luis, que se viu e desejou para repor o engenho em funcionamento. Nunca terá sabido que aquilo foi obra minha, que até hoje a ninguém contei a façanha.

Dizem, eu sei, que os rios acabam no mar
Que a mesma água só uma vez passa sob a mesma ponte
Dizem tanta coisa e tão pouco se aproveita,
Que já só sei que o saber sabe a pouco
E o conhecimento é fugidio como o cabelo.
Azenhas avariadas, moinhos que não moem
Já nem para as águas as pontes são as mesmas
Rios ou esgotos? Nada cheira à farinha de outros tempos...
Ficaram as lembranças das águas claras da meninice
Agora sem rãs sem musgo sem pedras
Sem mulheres lavando os males do mundo
Haverá prazer na vitória, terá a derrota amargura
Até a ternura terá seu dia de glória
E talvez os rios se achem no mar
Entre algas peixes de prata recordações de verdura
Talvez. Mas a água, mãe dos peixes, escorre-me entre os dedos
E só devolve a minha imagem deformada
Sei que eu não sou este nem este é o meu rosto
Mar, o meu rio, a minha água? Que seja ribeiro
Regueira, simples fio de mágoa – mas que seja eu.

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