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terça-feira, 24 de novembro de 2015

Os grelos e eu

-- Come-me esses grelos, ladrão! 
-- Não gosto!
-- Até tos meto pelos olhos dentro!
Fui criado com mimos, de comida, de linguagem. À ceia, a que hoje chamamos jantar, os malditos grelos, em abundância, pouca batata, prontamente comida, meio ovo cozido,
-- A metade dele é maior 'ca' minha!
-- Cortei o ovo a meio, não tenho régua na faca!
-- Pois, mas a mim dá-me sempre a metade mais pequena!
-- Cala-te, lambona! São iguais, mas se fosse maior, que mal tinha? Ele é homem!
-- E o que é que isso tem? 
Não dava já para comparar metades, que a minha tinha desaparecido com as poucas batatas, no prato ainda cheio restavam, verdoengos, agoniativos, amargos como fel, os grelos com os seus talos, paus chamava-lhes eu, que se enrolavam na boca e não atravessavam a garganta. Dia bom, as galinhas tinham posto dois ovos, coisa rara no Inverno, um para o meu pai, quando vier cear, o outro para nós. Para a minha mãe, que parte e reparte, mas como mãe fica com a pior parte, os grelos mal azeitados, azedos como ela, exasperada com as nossas brigas, sobretudo com a minha recusa em engolir o pitéu, que mais nada tinha para me dar.
Por isso volta a gritar, que coma os grelos ou mos enfia pelos olhos adentro, pelas goelas abaixo, quem manda, diz, é ela, aí vão eles à força, empurrados com bofetadas, arrepelões, safanões, passam o estreito, Ah, mas nasci torcido, hei-de terá última palavra, e vomito-os triunfalmente,
-- Malandro, não comes, vás prá cama com fome! E vou, orgulhoso, triunfante.
Traumas de infância. Este tão grave que hoje não troco simples grelos cozidos por qualquer comida gourmet da moda. E sempre, enquanto me delicio com os grelos azedos, recordo  com remorsos o que fiz sofrer a minha pobre mãe, recusando comê-los naqueles tempos de penúria. 
Cá se fazem, cá se pagam.

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