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terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

O hippie vai à tropa

Levantado fardamento e arma, doravante o nosso anjo da guarda, minha companhia noite e dia, assim nos doutrinam, formámos por alturas, mais ou menos desalinhados, 
— Nos rangers, resmunga o comandante de pelotão, um aspirante, alinhávamos a tiro de pistola! Ai de quem avançasse o nariz!
Nenhum de nós se atreve a rir. Esta gente é doida. E para camarada lisboeta, hippie de barbicha e cabeleira pelos ombros, tal e qual o Che Guevara, que antes da formatura tocava guitarra na espingarda guinchando Almost cut my hair: — Você devia ir cortar o cabelo, aparar a barba, antes que o nosso capitão o veja...
Não, não cortava. Que lhe mostrasse o artigo do RDM que proibia cabelo comprido. 
— É consigo. Se fosse eu, ia já cortá-lo. E passou aos rudimentos de ordem unida.
Implica comigo. Pudera. Colocou-me na vanguarda por ser o mais pequeno, onde dou inevitavelmente nas vistas. Desengonçado, sem aprumo. Sem brio militar — pois se o que eu quero é livrar-me da tropa! Como quase todos os outros. Muito poucos conseguirão. Dos três incorporados da minha terra, safar-se-á um por miopia, bem mais grave do que a minha, outro por ser tão gordo que não há fardamento que lhe sirva...
Para o final da manhã, juntamo-nos aos outros pelotões, já formados na parada. O capitão arenga. A armar-se em gajo porreiro, feliz por o 25 de Abril o ter libertado do autoritarismo, que, diz, detestava; agora o discurso é pedagógico: tudo o que nos vai ser exigido é para nosso bem. Os castigos não devem ser recebidos como humilhação, antes como correcção, e servem para melhorar a nossa condição física; o órgão recreativo, e nós rimos do jogo de palavras do capitão, quer-se lavado para evitar chatos e coceiras.  As botas devem estar sempre engraxadas, não para parecermos nazis dos filmes, mas porque se conservam melhor e são mais confortáveis; a farda irrepreensivelmente limpa e engomada por questão de brio e de higiene; as excrescências pilosas... bom, havia que distinguir. E passeava entre nós, mirando, discreteando. Barbas, bom, aceita-as nos comandos, ou nos fuzas na Guiné, de onde tinha regressado recentemente, para dar ar aterrador às tropas especiais; não as mandava cortar, mas então que as cuidassem, que as aparassem; bigodes como o meu, e olha-me trocista, precisavam de ser engraxados; o cabelo, curto para não enredar nos matos nas duras provas que nos aguardavam ou, e provocou mais risos, alimentar piolhos. 
Aguardávamos curiosos o que diria do camarada hippie. Nada. Nem pareceu vê-lo. E ninguém mais lhe chamou a atenção para o cabelo comprido. Parecia ter ganho.
No sábado, após o cross, formámos na parada para a revista que antecedia a saída de fim-de-semana. Inspeccionadas as fardas, avaliado o reluzente das botas, o comandante de pelotão distribui os passaportes que autorizam a saída. 
À voz de "Destroçar!", ouvi o camarada das gadelhas: 
— Meu aspirante, falta o meu!
— Ah pois, esquecia-me. 
E risonho entregou-lho — rasgadinho em inúmeros pedaços.
Quando regressei, na segunda-feira de madrugada, o camarada hippie estava irreconhecível, cabelo cortado à escovinha. Voluntariamente.

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