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segunda-feira, 23 de junho de 2014

Causas próximas do desconcerto em que vivemos

[A cena que se segue, pouco anterior à entrada do nosso país no Euro, faz parte de um longo conto meu, distinguido em concurso no ano passado. Leiam-na como e se vos aprouver, mas sugiro que, como num jogo, estejam atentos a causas do nosso desconcerto actual.]
"Já o Pedro e a Soraia nos esperam na esplanada, cerveja e tremoços amenizam o final da tarde, indolente como o teleférico ao fundo, como o Tejo que mansamente, imperceptivelmente, segue o seu destino, como as gaivotas que planam sem esforço, esganiçando-se estridentemente, imitadas, na mesa do lado, por umas donas da província, gente que aproveita o comboio para vir passear à capital e comprar vestuário da moda para os rebentos — esses índios que brincam à apanhada por entre as mesas, aperaltados em roupa de marca, Zara e afins.
“Imperiais também para nós, faz favor!”
A minha mulher cumprimenta lisonjeira a Soraia: “Que elegância!”
“É um Valentino, e pavoneia o vestido. Colecção deste ano.”
“Caro?”
“Um pouco. Mas o que importa é o gosto que proporciona.” — responde ufano o Pedro. Pega nas mãos da companheira como se estivesse em baile e a convidasse para dançar, roda-a de pé, para que apreciemos mulher e vestido no seu esplendor. Reconheço: num corpo daqueles qualquer trapo resplandece; e o Pedro sorri orgulhoso da sua mulher — boa, bem vestida, tudo a preceito, tudo conforme a moda da estação.
O Rodrigo e a Leonor chegam e interrompem sorridentes a exibição, ele com assobio galante, ela batendo as palmas entusiasmada: “Lindo. E fica-te a matar!” E procura com o olhar os outros amigos: “A Soraia e o cujo?”
“Ah, não podem vir, ele tem uma reunião hoje à noite, conselho de turma ou lá o que é...”
“Coitados dos profs, trabalham tanto!”, troça a Leonor. E nem ouve a resposta, deslumbrada com a beleza do vestido da Soraia, que tão bem realça a elegância da proprietária. Também ela e o Rodrigo vestem caro, vivem ricamente, viajam frequentemente. É o boom bolsista, volfrâmio dos nossos dias na forma de fundos comunitários a entrar diariamente a rodos no país, que permite este esbanjamento, esta ostentação, escandalosa aos olhos dos nossos pais: férias frequentes em países de sonho, palmares e praias de águas quentes, mergulho por entre corais, raias e tubarões, festas onde há sempre personalidades do jet set, massagens relaxantes, vestuário de autor, telemóveis e óculos de sol a centenas de contos, gadgets, carros e jipes topo de gama — um povo obcecado em fazer desaparecer vestígios da miséria ancestral, em trocar os tamancos paternos por sapatos Prada, disfarçar o fedor ancestral a estrume com perfumes franceses, olvidar o caldo e a broa dos avós na degustação de pratos artísticos nos restaurantes mais badalados pelas revistas do jet-set e estrelados pelo guia Michelin...

“Vamos ao Brasil nas próximas férias”, conta o Rodrigo. “Para o Nordeste.” E alarga-se já por essas infinidades de dunas e praias de águas azuis, boa comida, aventuras de Jipe pelos pantanais das telenovelas.
Ouvia-os, divertia-me com as suas histórias, o exotismo e a excentricidade seduziam-me também — como à minha mulher, sempre a sonhar com águas quentes e cristalinas, areais a perder de vista, hotéis requintados, mas o nosso rendimento familiar, embora bem acima da média, nem sempre nos permitia acompanhá-los.
O Pedro admirava-se da minha relutância em jogar na bolsa: “Não sabes o que perdes.”
“Também tenho umas acções”, justificava-me.
“Não, ter umas acções”, e imitava o meu tom de voz, “é como fazer um depósito a prazo: seguro, sem dúvida, que mais facilmente cai a serra da Estrela do que irão à falência estes bancos que por aí brotam, BPN, BPI...”
“Criados por políticos…”, acrescenta a minha mulher, e ele continua como se não tivesse sido interrompido: “Com as acções, o importante é comprar e vender. Depressa, em vez de as guardar.”
E discutimos esta promiscuidade entre política, banca, negócios, que assegura a rápida prosperidade de alguns, mas me parece pouco ética. Nasci em família remediada, com princípios morais, trabalho e honestidade, o que explica os meus excessos de prudência, a relutância em jogar na bolsa: “Vender produtos seguros para comprar outros, de valor incerto, não me entusiasma. É absurdo os títulos de uma empresa caírem quando tem lucros e os de outras, que nunca os tiveram, valorizarem constantemente…”
Conversa de comunista. Se queria endireitar sozinho o Mundo em vez de dele fruir, criticava a Soraia, secretária bem paga de uma multinacional: “As acções sobem e descem ao ritmo da oferta e da procura. São as leis do mercado. E toda a gente joga na bolsa se tiver com quê.”
“E precisa? Os bancos estão desejosos de emprestar dinheiro a quem quiser arriscar. Ganham eles, que capital parado não rende, ganham os clientes com as mais-valias, ganham os gerentes, que assim podem atingir os objectivos fixados.”
Eu, como sempre acontece nestas discussões, vacilava. Não eram tanto as frequentes viagens de sonho, as roupas de marca, os gadgets topo de gama que me deslumbravam. Mas há tanta coisa que me seduz e está fora do meu alcance: um jipe para a mulher, que os adora e deixaria de depender de mim para os transportes, um apartamento maior e melhor, se possível com vista para o rio, umas obras em casa dos velhos... Ela, no regresso a casa, invariavelmente insistia comigo: “Tens de investir em acções.”
“Em quais?”
“Sei lá. São assuntos de gajos, como o futebol e a política. Pergunta aos teus amigos o que deves comprar.""

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