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sexta-feira, 23 de maio de 2014

Gilvaz (2)

Gilvaz é a história de um jovem jornalista e revolucionário enviado ao Minho a cobrir os motins que por lá eclodiam contra os enterros nos cemitérios. Eis mais um excerto, provavelmente o último que divulgarei nos próximos tempos:
"Especulam aquelas santas, nada de concreto sabendo — mas aproveitam a oportunidade de denegrir Ermelinda aos olhos do missionário, essa fingida que dá espectáculo na missa lhe para cair nas boas graças! Como se cada uma delas não tivesse também abandonado aldeia, família, marido as casadas, para acompanhar de terra em terra, de igreja em igreja, aquele missionário, um dos quinze que partiram de Leiria a evangelizar, persuadidos de que a que a melhor África era o nosso Portugal e os seus inocentes pretinhos, os quais, faltos de douta cabeça a orientá-los, se perdiam, levados pela conversa ímpia dos liberais, enquanto os padres, acomodados no conforto das respectivas paróquias, esqueciam o rebanho e apenas zelavam pela preservação dos seus prazeres lidibinosos e proveitos cúpidos — quando não eram, também eles, livres-pensadores descrentes da virtude das penitências, das benfeitorias dos jejuns, sem fé no fogo purificador do Inferno!
Irmãs — assim se tratam entre si, assim se lhes dirige o povo, como se fossem freiras nesta confraria ambulante, todas elas a dar testemunho dos milagres do missionário: à Maria do Rosário, há anos acamada, bastou o "Levanta-te e anda!" para se pôr de pé e o seguir, Maria de Jesus, que há muito sofria de terrível prisão de ventre, ouviu-lhe a pregação e em poucos dias ficou aliviada, Joana Bartolomeu, toda a vida gaga até que o santo lhe soltou o freio, deu em falar escorreita e é um gosto ouvi-la .alardear os milagres do varatojano, Maria Angelina, de quem muito se falará nesta história, maria-rapaz, bêbeda, brigona, amiga de espancar homens à unha ou à paulada, fez-se tenra ovelhinha, meiga, amorosa, tão contristada com o padecimento de Jesus na cruz que se deixou dos palavrões feios com que atroava tabernas e escandalizava homens e mulheres de bons costumes, e só se lhe ouvem sofridos gemidos "Ai, meu Jesus! Porque te fizeram tanto mal?", agora Ermelinda, possessa por espírito maligno sem ninguém o saber, nem ela própria, talvez apenas o marido, João Pereira, de tal desconfiasse, tão duramente ela o tratava — e o poder do missionário de ambos a libertou!

Maravilha-se o povo com os prodígios do santo, indigna-se com as críticas dos ímpios, que riem das prédicas e apoucam os milagres, como se também eles fossem capazes de fazer o mesmo — pôr a andar paraplégica, a falar muda, curar obstipação crónica, fazer largar bebida e maus costumes, expulsar espíritos imundos! Alguns hereges chegam ao extremo de duvidar do testemunho de pessoas sérias que juram ter visto com aqueles "dois que a terra há-de comer" o missionário parar o Sol enquanto decorria a pregação para que nenhuma mulher se fosse pressionada pelas urgências da lide doméstica, depois há ainda os jacobinos, de má fé, a denegrirem, a ofenderem frade e devotas, atrevendo-se a insinuar que a muda deixara de falar por se ter zangado com a família, que a da obstipação nunca comia couves e feijões, a entrevada era retorcida e preguiçosa e recusava sair da cama para castigar o marido, a possessa mulher mal fodida, doença de que, calúnia ignóbil, o frade a terá depressa curado... Enfim, quem tiver olhos que veja, quem tiver ouvidos que ouça, embora milagre maior fosse certamente ouvir com os olhos ou ver pelos ouvidos."

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