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domingo, 19 de janeiro de 2014

Uma boleia atribulada

(Pelos meus dezoito anos (foto de baixo) viajei muito à boleia. Num Verão, corri o Algarve, história que fica para outra ocasião. Acumulei experiências, ouvi histórias, conheci pessoas. Muitos anos depois, passei algumas à narrativa. Uma delas é a que se segue, e situei-a nas curvas de Cós, na subida para a Santa Rita (foto de cima, do mesmo rolo da outra), um dos lugares mais bonitos da minha terra. Vale a pena a visita, sobretudo se incluir também o Mosteiro de Cós, o castelo de Porto de Mós — e os Mosteiros da Batalha e de Alcobaça, estes certamente já conhecidos de todos.)

Na viagem de regresso, estoirado, todo o corpo suspirando por descanso, adormecerá tão profundamente na camioneta que não fará o transbordo em Leiria e voltará novamente para trás... A uns cinco ou seis quilómetros, desperta-o o rádio, em berraria estridente, que condutor e revisor julgam-se sós no autocarro; atarantado vai ter com eles e pergunta se ainda falta muito para chegarem... 
— Já chegámos e já voltámos. Ainda estivemos uns dez minutos na garagem, responde o condutor. Acrescenta o revisor, em tom de justificação: 
— Olhei bem, e o autocarro estava vazio!
Desculpa-se: vinha a dormir, deitado no banco, lá atrás. 
— E agora?, pergunta preocupado, vendo que o autocarro ruge e devora estrada, motorista e revisor desejosos de chegar a casa, sem passageiros que protestem contra os tombos nas curvas ou que gritem assustados com o excesso de velocidade, o rádio sempre berrando tão alto que o João mal se consegue fazer ouvir.
— Ou volta connosco para Pombal, ou sai aqui e vai à boleia. 
— A esta hora, quem parará? 
Mas não tem outra solução e é isso que faz, com tanto azar que o deixam junto a um cemitério, raio de lugar, raio de hora, como chegará a casa, a uns bons trinta quilómetros? Meia hora depois, avista uns faróis, pede insistentemente boleia, o carro afrouxa, chiam os pneus com a brusquidão da travagem, ainda tenta explicar-se, mas interrompe-o voz apressada: — Entre! 
É médico e já devia estar há horas no hospital de Alcobaça, atrasou-o outro parto que correu mal, imagina rindo a fúria da parturiente que o aguarda gritando com dores, as imprecações da parteira, uma e outra supondo-o no conforto de cama de amante ou em farra bem bebida — se é homem há que esperar o pior, dir-lhes-á a sabedoria feminina. Não está incomodado, insultos e pragas aliviam o sofrimento de uma e a aflição da outra, e talvez entretanto a criança nasça sem a sua ajuda, poupando-lhe o trabalho de a pôr cá fora. É também aflito que o João se retesa e segura ao que pode, enquanto o doutor, divertido, troça dos seus receios, estranhos em quem pede boleia à porta do cemitério à meia-noite: parara convencido de que fosse alma penada que quisesse fugir de lugar tão macabro... O João, desesperadamente agarrado à porta para evitar cair em cima do doutor nas curvas, para não ser projectado nas travagens nem bater com a nuca nas acelerações, que, embora o veículo tenha já cinto de segurança não sabe como o pôr nem se atreveria a fazê-lo, ofendendo o condutor, aproveita uma recta para se explicar: tinha ido visitar a namorada, adormecera na camioneta e perdera a ligação... O médico ri, imaginando os motivos. Depois, sério, vendo a cara inocente do rapaz, dá conselhos, os quais, como sempre sucede com todos nós, só serão tomados, se o forem, tarde de mais. Diz-lhe que o comportamento feminino é frequentemente imprevisível, porque homens e mulheres pensam e reagem de diferentes maneiras, dão diferente importância às coisas... O João ouve-o, embora a atenção se concentre na estrada, como ele próprio gostaria que o médico também fizesse, olhando para o caminho em vez de o olhar nos olhos quando fala, bom seria também que não tirasse as mãos do volante para gesticular... Vendo que o pendura está mais preocupado com a sua condução “agressiva”, como a caracteriza, do que com os conselhos que prodigaliza, lembra-lhe que ele próprio trava quando entender necessário, não precisa o João de o fazer, nem de se inclinar nas curvas, que não vão de mota... Agora as mulheres, insiste, talvez por as considerar especialidade sua, pela profissão e pela importância que lhes dá fora dela, as mulheres podem ser, e são frequentemente, um problema, porque os homens as não compreendem nem são ensinados a fazê-lo. 
— Por exemplo, há mulheres que no período mudam por completo de comportamento, tornando-se agressivas, más, embirrantes, entendendo que por elas passarem mal os companheiros se devem desfazer em atenções, quando muitas vezes eles nem sequer sabem do sofrimento que as aflige — mas se gostassem realmente delas, deviam adivinhá-lo, sem que fosse preciso explicar-lhes, pensam elas. 
— Olhe, continua, conheci casos de casais com óptimo relacionamento que acabaram por se separar por causa desta incompreensão, elas ofendidas com a falta de solidariedade para com os tormentos delas, tão zangadas ficavam que acabada a menstruação os continuavam a privar da ração ou, se acaso entretanto faziam as pazes, entretanto começava novo período... Um círculo vicioso, está a ver, não é?
Mas o que o João via era a morte diante dos olhos: chiavam pneus, os faróis devassavam a noite, árvores e muros corriam loucamente direito ao carro e desviavam-se no último momento, o cheiro da borracha queimada penetrava novamente no interior do veículo... A dada altura, uma nuvem de centelhas chispou quando a parede de uma casa se não arredou, mas o médico nem sequer afrouxou: 
— Deixe lá, é só chapa riscada, o seguro paga a pintura. Onde é que você mora? 
E insistiu em o deixar em casa, para terror do João, ao imaginar aquela condução louca pelas curvas de Cós acima. Tinha razão em se assustar, que o médico parecia querer antecipar o lema que o povo defendeu nos anos noventa, sem conseguir convencer o Presidente da Câmara: Vamos fazer das curvas uma recta! Por várias vezes o carro teve pelo menos uma roda no precipício, chegou a entrar pelo atalho e após saltos violentos, apercebendo-se de que a o caminho não era por ali, acelerou em marcha atrás, enquanto os cabelos do João se punham em pé ao ver a velocidade a que recuavam sem que fosse possível descortinar na escuridão os limites do abismo; na Curva da Segunda o automóvel derrapou tanto que quase fez inversão de marcha: 
— Isto sim, são curvas que dão luta! Hei-de cá voltar! 
Subiam já em estrada melhor. 
— Olhe, tenho uns colegas com a mania dos ralis, vou desafiá-los para uma corridinha até cá acima.
— Moro aqui, senhor doutor, atreveu-se o João, ainda distante de casa, receoso de que o bólide entrasse pela sua rua adentro, raspando paredes, alvoroçando cães, apavorando moradores. — Muito obrigado pela boleia, sr. dr.!
— Não tem de quê. Olhe, tome o meu cartão, pode precisar se a sua namorada engravidar...
— Já está, descaiu-se o João. 
— Vê-se que você é dos que não perdem tempo!
Um Amor Inventado (ebook, Leya Online)

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