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domingo, 12 de janeiro de 2014

O último moicano

Ninguém. Nem perto, nem longe, nas colinas distantes. Nem sequer chilreiam passarinhos. O único ruído é o da água que canta pelas regueiras, depois se espraia, encharca o chão, me prende as botas à terra, coladas com quilos de lama. Não é difícil imaginar, como na infância, que sou o único habitante do planeta.
Começo a poda dos pessegueiros, já a quererem abrolhar. Sinal de que o Inverno não vai suficientemente frio. Na encosta, o Sol aquece-me, o suor escorre testa abaixo, sujando os óculos -- os primeiros suores do ano, e só me não ponho em tronco nu por medo dos mosquitos que se chegaram, pressentindo refeição engordada pelas comezainas de Natal e passagem de ano.
Avança lentamente a labuta. A exigir técnica, arte, intuição sobretudo. Tal como a escrita. E, para ambas, tesoura afiada, serrote volta-não-volta.
O Sol esconde-se por detrás da minha Salgueira, é tempo de regressar. À noite, nem ligo a televisão para me não irritar. Sentado à lareira, sozinho, no silêncio aldeão, volto a sentir-me longe deste mundo e dos seus funerais de circo, das suas guerras de alecrim e mangerona, do este diz que aquele disse, das intrigas dos jornalistas, quantas vezes a falarem apenas para encher espaço televisivo, da praga dos comentadores.
Contemplo quase hipnotizado as chamas  dançantes, volto atrás no tempo, a um tempo que não vivi, revejo os meus avós paternos naquele mesmo canto, os cinco filhos a aquecerem mãos e pés ao fogo, costas geladas pelas correntes de ar, antes de correrem para as enxergas frias e tiritarem noite fora, estômagos sempre necessitados... E inevitavelmente ocorrem-me os versos de Jacques Brel (Jaurès):
Estavam gastos aos quinze anos
Acabados ao começar
Os doze meses chamavam-se Dezembro
Que vida tiveram os nossos avós
Entre o absinto e as missas cantadas
Eram velhos antes de o serem

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