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domingo, 24 de janeiro de 2010

Tempo da poda (2)

Fragmento de Entre Cós e Alpedriz

"Como a cobra que sai do torpor invernal despertada pelo calor, não tanto para procurar alimento, antes para se aquecer ao Sol entre ervas secas, e vagamente se apercebe da proximidade de presas, assim também nos olhos do Jaime cintila um reflexo de vida: sabe, sente, que é o tempo da poda, e quase tem outra vez vontade de sorrir ao lembrar-se do provérbio Tempo da poda, tempo da foda, e das interpretações, uma apontando para a vida arrastada do camponês, outra para o renascer da seiva, nas plantas e nos corpos, natureza e humanos pulsando num mesmo frenesim reprodutivo. Ah, cumpriu bem a sua obrigação, sustentando a mulher o melhor que pôde, substituindo outros maridos se, acaso, as parceiras o requisitavam, iniciando jovens, dando a provar o bem-bom a uma ou outra solteirona… Não se arrepende. Não julga ter pecado, como não pecará o cão que cobre cadela atrás de cadela. Fez, está feito, prestará contas ao Criador, se lhas pedir, embora duvide de que tal aconteça, que certamente terá mais com que se preocupar, com tanto mal que vai pelo Mundo. Não matou, não roubou, honrou pai e mãe e se porventura há outros mandamentos para além destes também ele se não recorda deles, tal como apenas se lembra de uma oração, o Pai-Nosso, e nada nessa prece o faz sentir culpado do que quer que seja. Nem precisa de perdoar aos inimigos. Todas as querelas, todas as brigas, todas as animosidades, estão já enterradas debaixo de uma camada de tempo tão profunda como a de terra que em breve lhe servirá de agasalho e de resguardo e é mesmo com carinho que recorda zangas antigas, relações cortadas durante anos... Para quê tudo isso, se acabamos assim ou pior, se desta vida nada levamos, nem sequer os bons momentos, interrogar-se-ia se a clareza de ideias lho permitisse e se achasse que a reflexão valia a pena. Não, não são reflexões que lhe perpassam por detrás dos olhos, são imagens como as dos filmes que uma vez por outra cinemas ambulantes passam no barracão que serve de sala de cinema à aldeia, projectadas num lençol que faz as vezes de ecrã, e as imagens que lhe enchem a retina são da vinha coberta de vegetação verdejante — margaças floridas, com o seu odor inconfundível, roxas candeias que cresceram entre elas, serralhas em flor — e, esvoaçando livres por cima, longas vides que a tesoura de poda atarraca em cliques sucessivos, deixando talões de três olhos e varas de seis, gemendo seiva dos sarmentos cortados, são as nuvens fugidias que vindas do mar correm pelo céu sabe-se lá para onde — como a sua vida.

Nem amores ardentes, nem brigas, nem patuscadas, nem bebedeiras de caixão à cova — apenas a terra a que nasceu grudado se cola às suas recordações como o barro dos Montes se colava às suas botas. Vê, vê distintamente as vinhas descavadas, podadas, empadas, os cachos que despontarão e que a calda bordalesa azulará, o cinzento do oídio queimado pelo amarelo do enxofre, as tinas cheias e bem calcadas a caminho da adega transportadas em carro de bois cujo eixo de madeira chia alegremente apesar do óleo queimado com que o carreiro o lubrifica, o aguilhão que espevita os animais de dorso luzidio... Vê-se a si próprio na força da idade, um cavalão cheio de força, fazendo rodar a roda de ferro maciço do esmagador que moverá os rolos dentados que transformarão a polpa das uvas em sumo, sente outra vez o cheiro do mosto, não apenas na sua adega mas perfumando toda a aldeia, mexe outra vez as uvas que fermentam nas tinas, no lagar e nos tonéis remexendo com o tridente de ferro até ao fundo das vasilhas e aspira o perfume do líquido que borbulha enquanto aguarda a sinfonia das prensas cantantes, tlim, tlim, dirá uma, e logo outras responderão, emancipando o jovem mosto do pé, e escorrerá então definitivamente livre pelo ralo do lagar enchendo a pia, como filho já adulto que deixa a casa paterna para seguir o seu rumo vida fora..."

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