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terça-feira, 20 de outubro de 2009

Da Bíblia

Também a mim, a Bíblia me inspira. Assumo-o, só lamentando que a minha escrita não esteja à altura dos originais, na expressão perfeita da dor humana, do prazer, do ódio, do amor. Creio que só por má fé, ou por pérfidos interesses comerciais, se pode cuspir disparates sobre a obra que, no entanto, motiva e, no caso de Saramago, dá de comer. A ingratidão é pecado muito feio no mundo das letras. E, no que me diz respeito, chega de crítica ao mestre.
Eis um excerto do meu inédito Um amor inventado, em que inseri o sempre recorrente Lamento de Job, que comecei a apreciar graças a Camões (O dia em que eu nasci moura e pereça...) e à minha professora de Literatura Portuguesa II, Professora Doutora Lucília Pires, com quem tanto aprendi.

Capítulo 13. Entre cuidado e cuidado

(Para ler o capítulo na íntegra, clicar aqui)

...Mas, afinal, que faço eu na capela? Pois eu explico. Vim persuadido, quase obrigado pelo meu amigo João, que anda desesperado desde que a mulher o deixou, já lá vão três meses, e desde então me não larga, para que o acompanhe, o ajude, na busca da Berta. Ocorreu-lhe que na missa, rezando com fervor, poderia receber inspiração divina, algo como um pressentimento sobre o seu paradeiro, e sem coragem de vir sozinho, quase me forçou. Eu, ainda na adolescência, até passaria despercebido na igreja desta terra onde os homens apenas entram para casar, para baptizar os filhos, para funerais --- e chega bem, dirão eles, não é preciso mais. Mas o João, homem feito, com problema conjugal de todos bem conhecido, dá de imediato nas vistas: sem qualquer discrição, mesmo fingida, beatos e beatas esquecem momentaneamente as rezas mastigadas por alma de quem lá têm, viram-se ostensivamente para trás para confirmarem a sua presença, verificarem se há vestígios de lágrimas no seu rosto, não se coíbem de comentar com os vizinhos a estranheza de o ver na missa, e o bichanar percorre as filas de fiéis, sobrepõe-se ao sermão do jovem padre que se vê forçado a levantar energicamente braços e voz como se pedisse ajuda ao Alto, numa vã tentativa de recuperar a atenção do auditório...
Deixemos a coscuvilhice, concentremo-nos na prédica, não quero culpas assacadas pelo João se não receber a almejada inspiração... Aliás, parece até de propósito, as palavras do pároco poderiam sair da sua própria boca, que tanto tem sofrido --- saudades, humilhação pública, mofa, ditos e perguntas parvas:
“Até quando afligireis a minha alma e me atormentareis com vãos discursos? Já por dez vezes me humilhastes e não vos envergonhais de me insultar. Mesmo que verdadeiramente tivesse errado, o meu erro só a mim diz respeito. Mas vós levantais-vos contra mim, e me repreendeis por causa das humilhações que padeço (…) Grito contra a violência e ninguém me responde, levanto a minha voz e não há quem me faça justiça."
Então dá-se o escândalo, ainda hoje recordado: o João ergueu-se e bradou:
--- Ouviram bem o senhor prior? Se errei, o meu erro só a mim diz respeito!
Levantou-se burburinho, que prontamente cresceu e se tornou clamor: como ousava esse corno manso tomar a palavra durante a homilia, levantar a voz na casa do Senhor? E beatos e beatas, indignados com a falta de decoro, multiplicavam, não pães e peixes como Jesus fizera, mas insultos nada católicos, avançavam ameaçadores para nós, ignorando o sacerdote que os tentava apaziguar, enquanto eu arrastava para a rua o João, sempre gritando que também a ele não havia quem fizesse justiça. E chamava-lhes beatos falsos, vendo sacrilégio num sentido desabafo em local santificado, mas não dando ouvidos às palavras sagradas que acabaram de sair da boca do sr. Prior e que lhe permaneciam gravadas na memória:
“Mas vós levantais-vos contra mim, e me repreendeis por causa das humilhações que padeço!”
Da taberna em frente, do adro da igreja, até do café, um pouco mais distante, acorre o povo, atraído pela algazarra e pelos insultos vindos da portaria do templo. Puxo pelo braço do meu Job, com dificuldade consigo afastá-lo, que insiste em atirar à cara dos curiosos esse lamento de outro desgraçado como ele, destruído milhares de anos atrás sob o olhar atento do Senhor:
--- O meu erro só a mim diz respeito!
Semana após semana, ao chegar vindo do quartel, esperara encontrar a casa aberta, arejada, habitada, a Berta nos seus afazeres domésticos, a filha dormindo tranquilamente. Então bateria à porta, humildemente pediria para entrar e conversar, talvez se reconciliassem e acabassem na cama, amando-se outra vez, ou, se mulher continuasse zangada, sem sequer lhe falar, limitar-se-ia a ficar, contemplá-la, servi-la naquilo que deixasse, aguardando que lhe perdoasse.
Mas o mofo sobrepunha-se já aos cheiros a bebé, a pão, a comida cozinhada, ao próprio odor da Berta, tão peculiar, que o João sempre conseguira distinguir entre todos os outros; então, tristonho, cabisbaixo, deprimido, deixava-se ficar, sem cozinhar, sem comer, com vergonha de recorrer à casa paterna, pai e mãe desgostosos com a situação do filho, acabrunhados com a murmuração do povo, incapazes de conter remoques, ralhos e conselhos:
--- Bem te avisámos!
--- O que é que esperavas, casando à pressa com uma sopeira que mal conhecias?
--- Devias mas era ter-lhe chegado a roupa ao pêlo! Se lhe tivesses derribado uma asa, não poderia fugir assim, ainda por cima levando a tua filha! Ler mais

2 comentários:

Reinaldo Amarante disse...

É sempre bom ver alguém, Mestre, no caso, fazer uma referência elogiosa a um antigo professor(a). Apesar do meu amigo e colega Luís Bom dizer muitas vezes que "... o ideal seria um professor passar pelo aluno e não deixar marcas...", eu nunca deixaria de recordar e referir dois ou três professores que me "marcaram" no bom sentido.

JCC disse...

Já lá dizia o outro: somos anões às costas de gigantes.
No caso desta minha professora, tive o prazer de lhe dizer o quanto lhe devo vinte e tal anos depois...
A duas outras, que nunca mais vi (espero que continuem vivas, de saúde, e activas) agradeci na dedicatória do Lacrau e da sua Picada. E espero poder continuar a agradecer a todos os outros para quem tenho dívidas de gratidão.