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terça-feira, 8 de setembro de 2009

Nas curvas de Cós

"--- Ou volta connosco para Pombal, ou sai aqui e vai à boleia. Duvida: a esta hora, quem parará? Mas não tem outra solução e é isso que faz, com tanto azar que o deixam junto a um cemitério, raio de lugar, raio de hora, como chegará a casa, a uns bons trinta quilómetros? Meia hora depois, avista uns faróis, pede insistentemente boleia, o carro afrouxa, chiam os pneus com a brusquidão da travagem, ainda tenta explicar-se, mas interrompe-o voz apressada: --- Entre!

É médico e já devia estar há horas no hospital de Alcobaça, atrasou-o outro parto que correu mal, imagina rindo a fúria da parturiente que o aguarda gritando com dores, as imprecações da parteira, uma e outra supondo-o no conforto de cama de amante ou em farra bem bebida --- se é homem há que esperar o pior, dir-lhes-á a sabedoria feminina. Não está incomodado, insultos e pragas aliviam o sofrimento de uma e a aflição da outra, e talvez entretanto a criança nasça sem a sua ajuda, poupando-lhe o trabalho de a pôr cá fora. É também aflito que o João se retesa e segura ao que pode, enquanto o doutor, divertido, troça dos seus receios, estranhos em quem pede boleia à porta do cemitério à meia-noite: parara convencido de que fosse alma penada que quisesse fugir de lugar tão solitário... O João, desesperadamente agarrado à porta para evitar cair em cima do doutor nas curvas, para não ser projectado nas travagens nem bater com a nuca nas acelerações, que, embora o veículo tenha já cinto de segurança não sabe como o pôr nem se atreveria a fazê-lo, ofendendo o condutor, aproveita uma recta para se explicar: tinha ido visitar a namorada, adormecera na camioneta e perdera a ligação...

Depois, sério, vendo a cara inocente do rapaz, dá conselhos, os quais, como sempre sucede com todos nós, só serão tomados, se o forem, tarde de mais. Diz-lhe que o comportamento feminino é frequentemente imprevisível, porque homens e mulheres pensam e reagem de diferentes maneiras, dão diferente importância às coisas... O João ouve-o, embora a atenção se concentre na estrada, como ele próprio gostaria que o médico também fizesse, olhando para o caminho em vez de o olhar nos olhos quando fala, bom seria também que não tirasse as mãos do volante para gesticular... Vendo que o pendura está mais preocupado com a sua condução “agressiva”, como a caracteriza, do que com os conselhos que prodigaliza, lembra-lhe que ele próprio trava quando entender necessário, não precisa o João de o fazer, nem de se inclinar nas curvas, que não vão de mota... Agora as mulheres, insiste, talvez por as considerar especialidade sua, pela profissão e pela importância que lhes dá fora dela, as mulheres podem ser, e são frequentemente, um problema, porque os homens as não compreendem nem são ensinados a fazê-lo.

--- Por exemplo, há mulheres que no período mudam por completo de comportamento, tornando-se agressivas, más, embirrantes, entendendo que por elas passarem mal os companheiros se devem desfazer em atenções, quando muitas vezes eles nem sequer sabem do sofrimento que as aflige --- mas se gostassem realmente delas, deviam adivinhá-lo, sem que fosse preciso explicar-lhes, pensam elas.

--- Olhe, continua, conheci casos de casais com óptimo relacionamento que acabaram por se separar por causa desta incompreensão, elas ofendidas com a falta de solidariedade para com os tormentos delas, tão zangadas ficavam que acabada a menstruação os continuavam a privar da ração ou, se acaso entretanto faziam as pazes, entretanto começava novo período... Um círculo vicioso, está a ver, não é?

Mas o que o João via era a morte diante dos olhos: chiavam pneus, os faróis devassavam a noite, árvores e muros corriam loucamente direito ao carro e desviavam-se no último momento, o cheiro da borracha queimada penetrava novamente no interior do veículo... A dada altura, uma nuvem de centelhas chispou quando a parede de uma casa se não arredou, mas o médico nem sequer afrouxou:

--- Deixe lá, é só chapa riscada, o seguro paga a pintura. Onde é que você mora?

E insistiu em o deixar em casa, para terror do João, ao imaginar aquela condução louca pelas curvas de Cós acima. Tinha razão em se assustar, que o médico parecia querer antecipar o lema que o povo dos Montes defendeu nos anos noventa, sem conseguir convencer o Presidente da Câmara: Vamos fazer das curvas uma recta! Por várias vezes o carro teve pelo menos uma roda no precipício, chegou a entrar pelo atalho e após saltos violentos, apercebendo-se de que a o caminho não era por ali, acelerou em marcha-atrás, enquanto os cabelos do João se punham em pé ao ver a velocidade a que recuavam sem que fosse possível descortinar na escuridão os limites do abismo; na Curva da Segunda o automóvel derrapou tanto que quase fez inversão de marcha:

--- Isto sim, são curvas que dão luta! Hei-de cá voltar!

Subiam já em estrada melhor.

--- Olhe, tenho uns colegas com a mania dos ralis, vou desafiá-los para uma corridinha até cá acima."

Foto: as Curvas no Google Earth

Inédito meu. Ler mais

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