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sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Trovoadas

Os acontecimentos meteorológicos têm proeminência na minha escrita, certamente por causa da minha alma camponesa. Ontem, 20 de Setembro de 2007, trovejava quando me deitei, e adormeci recordando textos em que fiz trovejar. Por exemplo, Em Do lacrau e da sua picada, obra (sub)urbana:

“A raiva torna-se destrutiva, pensa nos comprimidos, não, comprimidos, não. Quando tentar é para ir até ao fim, não hoje, não por causa disto. Pensa sair sozinha, meter-se no carro, dar uma volta por aí, sem destino, pensa em locais onde se poderá divertir e mesmo seduzir, mas acaba por desistir, está demasiado cansada, está uma noite terrível para sair, água e vento, agora começou a trovejar. Dantes, quando era pequena, adorava este tempo, aconchegada na cama, abraçada ao seu ursinho, mais fiel e mais carinhoso do que qualquer homem que tenha conhecido, ursinho que não a quer levar para a cama apenas por uns minutos de prazer, — Adeus, até à próxima, quando os coisos voltarem a encher, telefono-te. Ursinho que não tem mulher e filhos, que não inventa desculpas, não mente, não discute nem força separações foleiras só porque já a registou no rol das conquistas e agora é altura de partir à caça de outro troféu.

Retira o urso do roupeiro onde o arrumara há muito, abraça-o e pouco a pouco começa a acalmar-se. Deixa de chorar convulsivamente, vê-se, agora sim, vê-se claramente no espelho da cómoda, limpa a face, endireita a gola da blusa, dá uma ajeitadela no cabelo, — Ah, se as minhas clientes me vissem agora, neste estado, nunca mais punham os pés no meu salão, e consciente da importância do seu aspecto sempre irrepreensível, vai agora tomar o banho por que ansiava desde que saiu do trabalho, um bom par de horas atrás, para vestir um pijama lavadinho e se enfiar na cama abraçada ao amigo fiel e verdadeiro, bem aconchegada sob os cobertores, escutando a chuva, o vento e os trovões, agora ribombando ao longe, afastando-se sempre até quase se não ouvirem. Apenas a luz dos relâmpagos entrando por uma friesta dos estores mal fechados a informa de que a trovoada continua, apenas mais longe, embalando-a, para que adormeça como uma menina e repouse, que bem o merece.”


Já em Entre Cós e Alpedriz, narrativa campesina, a trovoada tem diferente tratamento:

O enxofre saía da torpilha e envolvia-o, colando-se-lhe às mãos, à face, dando-lhe um ar de Satanás amarelento e sulfuroso, naquele trabalho de inferno, sob um sol também ele amarelado e diabólico, que o queimava por fora enquanto o enxofre ardia por dentro, abrasando pulmões, garganta, secando narinas e boca... Encharcada pelo suor, a roupa colava-se-lhe ao corpo, assando-lhe os sovacos, as virilhas... Nem os pés escapavam, roídos pelas duras botas, que nem o sebo amaciava já, e que o arrastavam veloz de cepa em cepa, sempre envolvido na nuvem sulfurosa que acabaria com o cinzeiro, se não acabasse com ele primeiro...

De tempos a tempos, levantava a cabeça para olhar o céu, receando que as pesadas nuvens desabassem sobre a terra sequiosa, o que, pensava, se aliviaria a pressão na sua cabeça, deitaria a perder o seu trabalho, lavando o enxofre que penosamente aplicava sobre parras e cachos de uvas. Tinha acabado de despegar quando o céu explodiu em fogo e vento; o dia fez-se subitamente noite e a noite se tornava dia rasgada pela luz arrepiante dos relâmpagos. Nos Montes, as mulheres que preparavam já a ceia, estremeceram apavoradas com o ribombar dos trovões e de imediato entoaram a ladainha da Santa Bárbara, esperando que lhes acudisse na desgraça iminente:

Santa Bárbara, bendita

que nos céus está escrita

a papel e água benta

levai para longe esta tormenta

para onde não haja garfo nem colher

nem vaca nem vitelo

nem homem nem mulher...

Grandes deviam ser os pecados do Homem, porque a tormenta, em vez de se afastar, aproximou-se e já não era só o firmamento que despejava fogo sobre a terra, era também a terra que crescia em labaredas ao encontro daquelas que desciam do céu: com um ruído assustador, levantara-se pouco antes um vento quente e seco, que rapidamente espalhou em todas as direcções as chamas que os raios haviam ateado. Então céu e terra uniram-se, tudo vermelho, tudo chamas, sem piedade pela vida de árvores, animais e pessoas. O sino tocou a rebate, o povo saiu à rua, carregando baldes, canecos, almudes e enxadas, sob o uivo fúnebre das mulheres, que carpiam já a desgraça pressentida, todos sabendo que o fogo é pior do que um ladrão, pois não se contenta em roubar e em matar, precisa de destruir tudo por onde passa.

Foi uma guerra antecipadamente perdida. Os campos secos incendiaram-se como um fósforo e as labaredas, empurradas pelo vendaval terrível que se levantara, atacaram os currais, os palheiros, as adegas e até as casas da periferia; o povo desuniu-se e cada qual procurou salvar o seu e acudir aos seus, permitindo que as chamas entrassem pelos Montes adentro, pelo Pátio dos Vieiras, inflamando as casas como fogueiras de Santo António, uma após outra, até à Rua Principal.

Longos excertos abusando da paciência de eventuais leitores… Que os leiam ou que os ignorem, como vos aprouver: este fim-de-semana vou fazer a vindima, esperando que o vinho venha a ser, pelo menos, tão bom como o do ano passado. Ele há coisas, como o vinho, as batatas e as couves, que alimentam e enchem de orgulho um produtor de textos ignorado!

JCC

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